O país está afundado numa crise económica e financeira para que não se vê saída próxima, mas isso não impede várias dezenas de milhares de criaturas, com mais ou menos piercings e mais ou menos tatuagens, de acorrerem em massa, alvoroço, excitação e devoção, a uns conclaves que dão pelo nome de Rock in Rio ou rock seja lá onde for. Podem perder noites e dias inteiros à espera dos seus ídolos, podem apanhar pulgas, catarros e constipações, podem faltar às aulas ou ao emprego, podem pagar várias dezenas de euros por cada bilhete de entrada. São os mesmos que, se lhes aumentassem as propinas em 50 cêntimos que fosse, saltariam para a praça pública a chamar nomes ao Governo e às Universidades. E pelo aspecto, muitos deles integram as hordas de indignados que aparecem por aí noutras ocasiões. Mas ali, entram em transe a aplaudir outros indignados, com a diferença interessante de que estes, no palco, fazem da sua indignação uma profissão que lhes dá rios de dinheiro e assim lhes compensa amplamente os radicais furores.
É neste clima de fuga à realidade e amplificações ensurdecedoras que o verdadeiro rock da pesada muda de nome e de cenário. Passa a chamar-se Euro 2012. Agora, não lhe faltará o singular empenhamento da comunicação social, engendrando expectativas desmesuradas de triunfo e criando em todas as almas verdadeiramente lusitanas o frisson patriótico daquelas manhãs de nevoeiro em que uma redenção colectiva nos há-de chegar pela biqueira ágil dos craques, pondo termo às nossas angústias.
De cada vez que há um campeonato destes, seja ele da Europa ou do mundo, é assim. Na rádio, na televisão, nos jornais, nos blogues, nas redes sociais, esse desmedido desassossego futebolístico em tempo de crise tem ocupado mais tempo e requerido mais atenção do que qualquer dos magnos problemas do país.
Investe-se conscientemente num jogo de ilusões e panaceias. Gastam-se rios de dinheiro em reportagens e em verbosas retóricas publicitárias que se proclamam apostadas em mobilizar o melhor das energias colectivas em torno de um objectivo de vitória, num trejeito impagável e convicto, como se estivesse em jogo a própria sobrevivência nacional.
Nos jornais, e sobretudo na televisão e na rádio, concentram-se todos os esforços numa cobertura noticiosa que é verdadeiramente maníaca na sua maneira de perder tempo e despender meios, obstinando-se em coisas sem importância nenhuma.
Atinge as raias do delírio a competição frenética entre os canais, apostados em esquadrinhar pormenores irrelevantes de todo, quanto aos jogadores, ao treinador, aos transportes, aos treinos, aos adeptos, aos horários, às refeições, às roupas... Grande parte dos serviços noticiosos e dos chamados especiais-informação é trufada com estas não-notícias em catadupa, ou apimentada com a recolha de palpites e opiniões sem qualquer espécie de interesse, mas servidos com doutoral e profética circunspecção. E é disso que se faz a nutrida concorrência mediática que nos infesta o dia-a-dia, com muita parra, pouca uva e sobretudo numerosos bichos caretas a perorar por tudo e por nada, mas sempre em nome da "verdade desportiva", da camisola heróica das quinas, do patrioteirismo indefectível, do "moralmente ganhamos sempre".
Se a televisão do Estado, para não falar já nas outras, despendesse com temáticas mais substanciosas a centésima parte do tempo e do esforço que faz com estas liturgias futebolísticas, já estariam em vias de solução muitos dos problemas que temos no tocante à crise dos valores, da promoção da educação e da cultura, da salvaguarda do património, da cidadania, das mentalidades.
Mas verifica-se que o conceito de serviço público resvala sistematicamente para uma perversão que não tem comparação possível com outras realidades. Parece não haver volta a dar-lhe. E nem um mais que provável traumatismo "ucraniano" terá o condão de nos fazer escapar ao futebol como destino electrizante da pátria.
Vasco Graça Moura - 13/06/2012
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